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Seis bilhões para eletrificar a última milha

Daniel Yüan Tsao
29 de setembro de 2025
Acessos: 7

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O anúncio é direto: 99 e DiDi abriram uma linha de até R$ 6 bilhões para acelerar o acesso de entregadores a motos e bicicletas elétricas no Brasil. Não é um piloto tímido; é um programa de escala industrial, com horizonte de três a cinco anos, rollout inicial em São Paulo e Belém e uma ambição clara: reduzir o custo por entrega, elevar disponibilidade de frota e reorganizar a economia da logística leve. Em vez de esperar a infraestrutura amadurecer, o plano coloca o hardware nas mãos de quem roda a cidade — via crédito direcionado e modelos de locação — e molda a rede ao redor desse novo fluxo.

"Moto da 99"
"Moto da 99"

Crédito e locação como “infraestrutura”

O gargalo da eletrificação para quem trabalha na rua nunca foi vontade; foi capex. A resposta combina três camadas:

  1. Linhas de crédito com underwriting de risco ajustado à realidade do entregador, usando dados de uso (quilometragem, padrões de rota, incidentes) para calibrar taxas e limites.
  2. Locação/assinatura em formatos pay-as-you-go ou rent-to-own, que diluem a entrada e convertem custo fixo em variável.
  3. Telemetria e imobilizador remoto, que reduzem perdas para o financiador e, por tabela, barateiam o crédito.

Parceiros especializados entram com financiamento, fintech, rede de baterias e manutenção. Na prática, o degrau de entrada some, e o TCO (Total Cost of Ownership) fica previsível: menos gastos com combustível e trocas de óleo, menos paradas não programadas, mais uptime.

O que muda na rua: custo, energia, tempo

Na operação de última milha, quem manda é o tripé custo por km, tempo parado, disponibilidade do veículo. A energia elétrica derruba o custo unitário (kWh substitui gasolina), e a arquitetura do motor elétrico elimina itens de manutenção típicos do ciclo Otto. Em cidades com battery swapping, a “recarga” vira troca de minutos, e o planejamento da jornada passa a seguir o mapa de estações, não a tomada da residência. Em perfis de uso intensivo, as economias operacionais individuais chegam com folga à casa das dezenas de pontos percentuais, variando por preço local de energia, quilometragem e política de baterias.

Dicionário do asfalto (sem rodeios)

  • TCO: custo total de propriedade (aquisição/assinatura + energia + manutenção + seguro + depreciação).
  • Underwriting telemétrico: análise de risco baseada em dados reais de uso, ajustando preço do crédito à condução e ao contexto operacional.
  • Swapping: troca rápida de bateria descarregada por carregada em estações credenciadas; paga-se pela energia e disponibilidade, não pela posse da bateria.
  • Imobilizador OTA: bloqueio remoto do veículo em casos de inadimplência ou furto, o que reduz perdas e viabiliza juros menores.

Por que São Paulo e Belém

São Paulo oferece densidade de pedidos, rotas previsíveis e quilometragem diária alta — o laboratório ideal para provar ganho de eficiência e unit economics. Belém vira vitrine internacional no ciclo da COP30 e adiciona um componente de política pública e diplomacia climática à narrativa. O recado é duplo: escala operacional e simbologia de transição energética.

O tabuleiro competitivo: do app à plataforma

A controladora reforça o caminho do superapp: transporte, entregas e serviços financeiros sob o mesmo teto. O crédito para e-motos e e-bikes encaixa como peça tática: conquista o trabalhador, reduz o custo por pedido, estabiliza a experiência e ancora a expansão do aplicativo. O entregador passa a consumir crédito, seguros embutidos, meios de pagamento e fidelização — e a plataforma captura valor por várias frentes.

Energia, bateria e operação: camadas técnicas que importam

  • Química de baterias: fosfato de ferro-lítio (LFP) tende a dominar por segurança térmica, robustez a ciclos e custo por kWh; densidades menores, porém, são compensadas por swapping.
  • Gestão térmica: mesmo em veículos leves, o controle de temperatura da bateria prolonga vida útil e evita perda de desempenho sob calor intenso típico de rotas urbanas.
  • Recarga e rede: quando não há swapping, recargas AC de baixa potência funcionam como “pernoite de depósito”; DC de maior potência entra em janelas curtas entre turnos. O escalonamento de potência (peak shaving) evita penalidades na conta de luz do operador.
  • Telemetria e manutenção preditiva: dados de corrente, tensão, SOH/SOC e vibração antecipam falhas (pneu, freio, rolamento), reduzem indisponibilidade e melhoram a revenda.

Trabalho, dados e contratos: o que precisa caber no papel

Eficiência é boa, mas quem captura o ganho? Reduções de custo por pedido precisam se refletir em renda líquida maior para quem pedala ou pilota. Em modelos de locação, SLA de disponibilidade deve ser explícito: se a bateria falha, qual o tempo máximo de reposição? Portabilidade de dados evita assimetria extrema: o histórico telemétrico que hoje reduz juros não pode se tornar bloqueio para trocar de operador amanhã. E seguro embutido precisa ser claro quanto a cobertura de terceiros, roubo e perda total.

Efeitos sistêmicos: quando a curva dobra

Mais veículos elétricos em circulação geram demanda por pontos de recarga e estações de troca. Essa massa crítica melhora a viabilidade de fornecedores locais (mecânica, eletrônica de potência, software de frota), que por sua vez reduzem preços e abrem novas camadas de serviço: planos de energia sob medida, otimização de rotas, financiamento de baterias como ativo separado. É o efeito rede clássico, agora aplicado à logística leve.

Riscos reais (e como mitigá-los)

  • Bolha de crédito: sem underwriting fino, a inadimplência joga contra todo o setor. Mitigação: telemetria, educação financeira e seguro de gap.
  • Dependência tecnológica: se a mesma empresa financia, fornece a bateria e controla o app, o trabalhador fica preso. Mitigação: contratos modulares e interoperabilidade.
  • Infra desigual: swapping e recarga não podem virar privilégio de bairros centrais. Mitigação: metas de cobertura e incentivos cruzados com prefeituras.
  • Sucateamento precoce: sem logística reversa e segunda vida de baterias, a conta ambiental não fecha. Mitigação: política de take-back e rastreabilidade de células.

No fim, a pergunta não é se a última milha vai eletrificar, mas que tipo de mercado ela vai criar. Seis bilhões podem desenhar um atalho para eficiência — ou um labirinto de dependências. A diferença está nas vírgulas do contrato, na qualidade do dado e em como a cidade escolhe medir vitória: por custo por pedido, por renda do trabalhador ou por ar respirável no semáforo.