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Secretaria Nacional de Eletromobilidade: o software público da transição

Daniel Yüan Tsao
10 de outubro de 2025
Acessos: 8

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O anúncio foi objetivo e, ao mesmo tempo, estrutural: nasce no Ministério de Minas e Energia a Secretaria Nacional de Eletromobilidade. A peça que faltava para costurar um país que já somava iniciativas dispersas — incentivos industriais, metas de descarbonização, expansão de recarga, pilotos de armazenamento —, mas sem uma batuta única. A nova secretaria promete justamente isso: transformar projetos em política de Estado, com cronograma, métricas e integração fina entre energia e transporte.

Mobilidade Elétrica Coletiva
Mobilidade Elétrica Coletiva

O que muda, de verdade

Até aqui, cada avanço da mobilidade elétrica dependia de múltiplos intérpretes: regulação tarifária, planejamento elétrico, operação do sistema, política industrial, clima, além de estados e municípios lidando com licenciamento, uso do solo e frotas públicas. A secretaria chega para centralizar o desenho, estabelecer prioridades e definir interfaces técnicas entre esses mundos — algo semelhante ao que telecomunicações conquistou quando adotou padrões abertos e metas por ciclo regulatório.

Tradução prática: metas anuais para pontos de recarga (AC e DC), critérios nacionais de interoperabilidade (padrões de conector, OCPP, roaming), diretrizes para tarifação horária e sinal locacional (preços compatíveis com a capacidade da rede), além de integrar a expansão com planos das distribuidoras para que o hub de recarga nasça com infraestrutura. No escopo também entram a política de baterias — do conteúdo local ao descarte e segunda vida — e instrumentos financeiros para frotas e logística pesada.

Energia encontra transporte: engenharia de sistema

Mobilidade elétrica não é só “carro plugado”. É gestão de demanda. À medida que a rede recebe mais carregadores rápidos, dois riscos crescem: picos concentrados e ilhas de alta potência em bairros já estrangulados. O antídoto é regulatório e tecnológico:

  • Tarifas dinâmicas e sazonais que empurrem o carregamento para fora do pico e para áreas com folga de rede.
  • Demand response dedicado à recarga, com agregadores oferecendo flexibilidade ao sistema (carros e ônibus como “cargas moduláveis”).
  • Planejamento locacional de hubs DC, próximos a subestações com capacidade e, quando possível, combinados a geração local e baterias estacionárias.

Nesse tabuleiro, leilões e programas de armazenamento em larga escala tornam-se o elo entre “carregar veículos” e “estabilizar o sistema”.

Interoperabilidade, dados e o usuário no centro

O país precisa evitar o labirinto de aplicativos incompatíveis e cartões proprietários. Três pilares resolvem o problema:

  1. OCPP/OCPI como língua franca para estações, plataformas e roaming.
  2. Direito ao dado de carregamento — consumo, preço e histórico pertencem ao usuário e são portáveis.
  3. Transparência tarifária — preço conhecido antes do clique, com discriminação de energia, demanda, taxa de plataforma e impostos.

Resultado: um mercado mais líquido, em que a concorrência se dá por disponibilidade, manutenção e localização — não por jardins murados.

Frotas públicas e o poder do efeito rede

Ônibus urbanos, coleta de resíduos, utilidade pública e logística postal formam um pipeline previsível de quilometragem. Priorizá-los aciona volume para fabricação local, padroniza especificações (tensão, conectores, SLA de bateria) e ancora hubs de carga compartilháveis com táxis, aplicativos e caminhões leves fora do pico. Cada licitação municipal bem desenhada vira multiplicador — o município seguinte herda aprendizados e preços melhores.

Base de Carregamento de Ônibus
Base de Carregamento de Ônibus

Baterias: da química ao ciclo de vida

O desenho nacional deve integrar:

  • Conteúdo local inteligente (eletrônica de potência, BMS, integração de pack), enquanto cátodos e ânodos evoluem conforme escala e competitividade.
  • Passaporte da bateria, com rastreabilidade do berço ao descarte para habilitar crédito mais barato, seguro previsível e segunda vida organizada.
  • Segunda vida em aplicações estacionárias (hospitais, escolas, data centers públicos), reduzindo custo de energia e ampliando resiliência.

Amazônia, Belém e a política que conta história

Apontar a lente para a Amazônia tem camadas técnicas e simbólicas. A região pede soluções de logística insular e sistemas isolados, onde armazenamento e geração distribuída mudam a equação da energia e do transporte. É um recado claro: eletromobilidade não é luxo metropolitano; é infraestrutura para territórios desafiadores.

Métricas que realmente importam

Para sair do discurso e entrar na rotina, a secretaria deve publicar regularmente:

  • Disponibilidade média das estações (uptime).
  • Custo médio por kWh ao usuário, por região e horário.
  • Sessões por ponto e por faixa de potência, guiando expansão.
  • Emissões evitadas por modal e quilômetro.
  • Prazos de licenciamento e conexão de novos pontos — o gargalo silencioso.

São indicadores que conversam com investidor, prefeitura e motorista.


Quando governos acertam no desenho, a tecnologia deixa de ser notícia e vira hábito. A Secretaria de Eletromobilidade é menos sobre inaugurar uma sala e mais sobre instalar um protocolo: prioridades claras, padrões abertos e métricas públicas. O resto — carros, ônibus, cabos e aplicações — tende a seguir o compasso.