N-One: o microelétrico que revela o buraco entre o que o Brasil deseja e o que o Brasil viabiliza

Por Erik Perin
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Há uma dose de ironia em ver um carro concebido para “caber” no Japão — onde rua, vaga e imposto são milimetrados — tornar-se, de repente, um bom espelho para o que falta ao ecossistema de elétricos no Brasil. O recém-apresentado Honda N-One, versão 100% elétrica do consagrado kei car, é menos um produto e mais um enredo: dimensões contidas, autonomia competitiva, eletrônica que conversa com a casa e um projeto pensado para cidades densas. Um laboratório sobre rodas do que a eletromobilidade urbana pode ser quando infraestrutura, regulação e incentivos caminham juntos.

O que é esse “kei elétrico”, afinal?
No Japão, kei cars obedecem a limites rígidos: até 3,40 m de comprimento, 1,48 m de largura e 2,0 m de altura, com benefícios fiscais e de estacionamento que moldaram décadas de urbanismo motorizado. A versão elétrica embarca nesse mesmo envelope — o que significa ruas menos ocupadas, vagas mais aproveitadas e consumo energético muito baixo no ciclo urbano.
A Honda não abriu todas as fichas técnicas, mas já cravou direções importantes: autonomia superior a 270 km no ciclo WLTC e capacidade bidirecional (V2L/V2H), permitindo alimentar equipamentos externos e, em sistemas compatíveis, devolver energia para a residência. É a eletrificação saindo do carro e entrando no cotidiano — do camping à resiliência doméstica em blecautes.
Relatos de bastidores apontam um motor único na casa dos 63 cv e comprimento dentro do limite kei, quadro coerente com a proposta de mobilidade de bairro: silenciosa, previsível, com aceleração honesta e consumo parcimonioso. Para o uso real, significa vencer ladeiras com sobriedade e trafegar a velocidades urbanas com folga, sem prometer esportividade que o contexto não exige.
Por que ele nasceu lá — e não aqui?
A resposta curta: o N-One é um produto de ecossistema. No Japão, regras claras favorecem o microelétrico: padronização física (dimensões), previsibilidade tributária e cidade preparada para veículos pequenos. No Brasil, o caminho começa na alfândega. Após a reoneração, os elétricos pagam 10% (jan/24), 18% (jul/24), 25% (jul/25) e 35% (jul/26) de imposto de importação — degraus que pesam demais num projeto com tese de preço acessível.
Depois da fronteira, vem a homologação. Desde a Portaria SENATRAN 990/2022, a certificação (CAT) exige que sistemas e componentes atendam aos padrões brasileiros do CONTRAN, sem a aceitação automática de equivalências europeias. Para um kei, adaptar estruturas de impacto, iluminação, fixações de cadeirinhas e rotulagens ao mosaico regulatório local pode custar mais do que o business case permite — especialmente sem produção regional para diluir investimento.
Por fim, há o uso. Nossas cidades foram desenhadas para carros médios e grandes, com rodovias urbanas e intermunicipais integrando a rotina de quem mora longe do trabalho. Um kei car elétrico brilha no hipercentro; perde brilho quando o trajeto típico mistura anel viário, serra e 40 km de deslocamento diário. Isso não invalida o conceito; apenas expõe a falta de políticas que estimulem nichos urbanos onde ele faria mais sentido.
O valor técnico do “pequeno”
O que impressiona no N-One não é a ficha sensacionalista, mas a arquitetura inteligente. Ao priorizar massa contida e aerodinâmica limpa (frente vertical curta, superfícies planas, rodas pequenas com pneus de baixa resistência), o pacote elétrico rende mais com menos — quilômetros por kWh como métrica de engenharia, não de marketing. Some-se a isso o V2H: o carro vira buffer doméstico, nivelando picos, oferecendo autonomia energética em emergências e potencialmente participando de tarifas horárias. Em cidades com rede preparada, o carro deixa de ser “carga” e vira ativo energético — exatamente o passo em que o Japão já caminha e que o Brasil ainda precisa pavimentar.
O que nos separa dele (e de outros como ele)
Três travas se combinam por aqui:
Custo de entrada: tributação escalonada até 35% torna microelétricos importados inviáveis na faixa de preço que justifica seu propósito (baixo TCO com ticket inicial amigável).
Normas e adaptações: a homologação brasileira — correta ao exigir segurança — demanda projetos dedicados. Sem volume, não fecha a conta.
- Política urbana: faltam zonas de baixa emissão, vagas dedicadas e tarifas inteligentes de estacionamento/recarga que premiem veículos menores e mais eficientes, multiplicando seu impacto positivo no tráfego.
Enquanto isso, o Japão segue entregando o que desenhou para si — e a Honda, coerente, lança seu kei EV exatamente onde a infraestrutura, a tributação e o hábito de uso dão retorno. No Brasil, seguimos discutindo “se” haveria mercado, quando a pergunta mais honesta é “que cidade precisamos projetar para que haja?”.
Se o N-One aparece para nós como desejo distante, talvez seja menos por falta de vontade e mais por engenharia institucional. Produto certo, hora certa, lugar certo — três variáveis que, quando alinhadas, fazem até o menor dos carros ocupar um espaço enorme.